Zona de conforto ou problema de design?

Zona de conforto ou problema de design?



Author Eduardo Rubinato


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O limite entre resistência, entendimento e usabilidade

Conversando estes dias com um coordenador de produtos a respeito de baixas adesões seja em jornadas projetadas ou telas fetias, ouvi que na visão dele o maior ofensor à mudança, ou a tal da zona de conforto.

Mas será que isso é mesmo uma verdade ou apenas um dos possíveis aspectos que fazem ou não um usuário aderir a uma nova proposta feita?

É muito comum ouvir, quando uma nova interface ou jornada é rejeitada pelos usuários, o argumento de que “eles estão na zona de conforto”. A ideia de que a resistência vem do hábito é, de certa forma, verdadeira — mas também pode funcionar como uma meia-verdade perigosa.

Afinal, quando pensamos em design de experiência, é fundamental entender onde termina o comportamento natural de adaptação e onde começam os problemas reais de usabilidade e, mais profundamente, onde podem existir falhas de entendimento do próprio problema que se tentou resolver.

O que há de verdadeiro na “zona de conforto”

Mudanças geram atrito — isso é um fato, ainda mais quando pensamos em softwares.

Usuários tendem a se acostumar com padrões visuais e maneiras específicas de realizar tarefas. Assim, quando algo muda, mesmo que objetivamente melhore a experiência, há uma curva de reaprendizado inevitável.

Esse fenômeno é amplamente estudado em UX e pode ser explicado por alguns princípios:

  • Lei de Jakob Nielsen: “Os usuários passam a maior parte do tempo em outros sites. Isso significa que eles preferem que o seu site funcione da mesma forma que os outros sites que já conhecem.”

As heurísticas de Usabilidade de Nielsen e Norman: especialmente as que tratam de consistência, visibilidade do status do sistema e controle do usuário. Elas explicam como o usuário constrói previsibilidade e confiança ao interagir com um sistema. Em outras palavras, o usuário cria modelos mentais baseados em padrões já consolidados, e qualquer ruptura exige energia cognitiva adicional.

  • Inércia Cognitiva: conceito da psicologia cognitiva que descreve a tendência das pessoas de manter hábitos mentais e comportamentais mesmo quando confrontadas com alternativas mais eficientes — o famoso medo da mudança.

Esses princípios ajudam a compreender por que uma interface ou jornadas novas pode ser rejeitadas em um primeiro momento. Contudo, essa explicação só é válida até certo ponto — e muitas vezes é utilizada como desculpa para esconder não apenas falhas de design, mas também lacunas de entendimento do problema a ser resolvido.

Quando a “zona de conforto” se torna desculpa?

O problema surge quando a justificativa da “zona de conforto” é usada para mascarar falhas de design, de entendimento ou de pesquisa.

Se, depois de um período razoável, os usuários continuam confusos, cometem mais erros ou relatam que as tarefas estão mais difíceis, a rejeição não é mais resultado de hábito — é sinal de que algo foi mal interpretado no projeto.

E aqui entra um ponto crítico: muitas vezes, a resistência do usuário é o sintoma de um problema mais profundo, que começa antes mesmo do design existir.

Pode haver uma falta de entendimento estratégico do projeto — das premissas, do contexto, do escopo — ou uma superficialidade na descoberta de problemas, tanto no desk research quanto nas pesquisas com usuários.

Quando o designer (ou o time) não compreende a fundo o problema que precisa ser resolvido, as soluções acabam se apoiando em suposições ou meias verdades. E, nesse cenário, culpar a “zona de conforto” se torna uma forma conveniente de evitar a autocrítica: o problema não é o usuário resistir, é de nós termos entendido pouco sobre o que realmente o move, o que o incomoda e o que ele espera alcançar.

Neste te sentido, diversos estudos mostram que a resistência do usuário — frequentemente atribuída à “zona de conforto” — muitas vezes está mais ligada à falta de entendimento, clareza e percepção de valor do que ao simples apego ao que é familiar.

  • Um estudo publicado pela Emerald (2021), sobre adoção de novas ferramentas de RH em equipes de TI na França, demonstrou que a intenção de uso de novos sistemas depende fortemente da percepção de benefício e da clareza do motivo da mudança. Em outras palavras, quando o usuário não entende por que mudar nem o que ganha com isso, o hábito pesa mais — e o discurso da “zona de conforto” vira uma consequência, não a causa.

  • Já outro trabalho, de 2020, investigou a implementação de um novo sistema governamental para avaliação de deficiência. Usando o modelo TAM (Technology Acceptance Model), os pesquisadores descobriram que 57,5% da intenção de uso estava relacionada à resistência dos usuários, mas que essa resistência derivava de percepções de utilidade, facilidade e clareza de uso — ou seja, de aspectos diretamente conectados ao design e à forma como o problema foi compreendido.

  • A Communications of the ACM (2017) publicou o artigo Why Agile Teams Fail Without UX Research, mostrando que times ágeis que ignoram a etapa de pesquisa acabam projetando produtos que não refletem as reais necessidades dos usuários. Eles citam dados de mercado indicando que apenas 16% dos usuários retornam a um aplicativo mais de duas vezes quando a experiência inicial é confusa ou irrelevante — o que reforça que o problema não é resistência, mas falta de empatia e descoberta insuficiente.

  • Por fim, uma pesquisa publicada na IJSR (2024) sobre transformação digital em empresas constatou que até 70% das iniciativas de mudança falham em atingir seus objetivos por falta de estratégias adequadas de adoção, comunicação e entendimento do contexto. Nesses casos, o argumento da “zona de conforto” aparece como um rótulo conveniente para justificar falhas no diagnóstico e na comunicação de valor.

Em resumo, o que esses estudos revelam é que a resistência do usuário raramente nasce de uma simples aversão à mudança. Na maioria das vezes, ela é um reflexo de falhas no entendimento do problema, de pesquisas rasas ou de ausência de clareza sobre o valor entregue. A “zona de conforto”, portanto, não é o inimigo — é apenas o sintoma de um design que começou com as perguntas erradas.

Como diferenciar hábito, problema de UX e falha de entendimento

Apenas justificar uma baixa adoção como “zona de conforto” pode mascarar problemas sérios. Por isso, é importante compreender quando o problema não é o hábito, mas a experiência — ou até mesmo a falta de entendimento de contexto e necessidades.

Contudo, alguns sinais ajudam a distinguir esses cenários:

  • Reclamações genéricas (“mudou tudo”, “prefiro o antigo”) tendem a refletir hábito.
  • Reclamações específicas (“não encontro o botão”, “demoro mais para concluir a tarefa”) apontam para problemas de UX.
  • Se novos usuários — que nunca usaram a versão antiga — e ainda sim têm dificuldades, o problema é de design.
  • Se a tela ou jornada não resolve a dor original, talvez o problema esteja no diagnóstico inicial, não na interface

Assim esses sinais devem ser avaliados junto com dados quantitativos (métricas de uso, taxa de erro) e qualitativos (entrevistas, observações, feedbacks contextuais), além de uma revisão das premissas de pesquisa: o que se sabia, o que se supôs e o que não se explorou o suficiente.

A responsabilidade do designer (e do time)

Como vimos o papel do designer vai além de entregar algo esteticamente agradável. Seu desafio é criar experiências que resolvam o problema certo — o que exige clareza de propósito e profundidade de entendimento.

Testar hipóteses, revisar as descobertas, comparar versões e coletar feedbacks são etapas essenciais para garantir que a resistência do usuário não seja um reflexo de falhas do processo.

Práticas como testes A/B, entrevistas, análises de jornada, pesquisas exploratórias e desk research mais analítico ajudam a construir uma visão mais clara antes de propor soluções, também é útil introduzir ações de onboarding e mensagens contextuais para reduzir a fricção inicial sem comprometer a inovação.

Conclusão

A “zona de conforto” do usuário é real, mas é apenas parte da história. Ela explica a resistência inicial, mas devemos ter o cuidado para que isto não serva como escudo para justificar falhas de design, pesquisa ou entendimento.

Em última instância, a função do design é convencer o usuário — não pela insistência, mas pela clareza e relevância através de um entendimento profundo do problema, e de entrega valor real percebível pelo usuário.

Afinal, mesmo que possa haver um curto tempo de adaptação, uma boa experiência sempre acabará por falar por si.

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